Em julho passado, o clínico geral Valmir Crestani Filho, do Hospital das Clínicas de São Paulo, postou um desabafo em suas redes sociais: “Este ano, ouvi de três pacientes: ‘Doutor, me prescreve uma vitamina?’”. O primeiro era um carcereiro. Depois de uma rebelião, passou a sofrer de estresse pós-traumático. Queixa: falta de libido. A segunda era uma diarista. Saía de casa às 4 da manhã e voltava às 8 da noite. Queixa: cansaço. O terceiro era engenheiro. Dirigia Uber 14 horas por dia. Queixa: desânimo. “Não há vitamina que trate uma sociedade doente”, diagnosticou o médico.
Falta de libido, cansaço e desânimo são três dos muitos sintomas de problemas emocionais ou transtornos mentais propriamente ditos descritos por trabalhadores brasileiros que procuraram consultórios ou hospitais nos últimos tempos.
Segundo o estudo Trabalho e Sofrimento Psíquico: Histórias Que Contam Essa História (2019), que deu origem ao livro homônimo escrito por Thatiana Cappellano e Bruno Carramenha, as queixas mais comuns nesse contexto são estresse (76%), ansiedade (75%) e desânimo (65%).
“E não adianta tratar os sintomas se não resolvermos a origem do problema”, analisa Crestani. “Vivemos em uma sociedade em que um número grande de trabalhadores se submete a jornadas estressantes para concentrar renda nas mãos de um número reduzido de pessoas. Se eu pudesse prescrever um remédio para tratar essa situação, prescreveria o combate à desigualdade social”, completa o médico.
Ainda assim, dá para dizer que o sofrimento psíquico ligado ao trabalho é bem democrático: afeta do assistente ao CEO da empresa. Na pesquisa citada anteriormente, de 754 entrevistados, quase oito em cada dez relataram que o emprego pesava em seu bem-estar emocional.
Não é de hoje, portanto, que os ambientes laborais (físicos ou virtuais) podem se tornar patogênicos. E por inúmeras razões. A principal, segundo um levantamento da Kenoby, startup de recrutamento e seleção, é a falta de diálogo entre funcionários e gestores. Também dificultam as coisas a ausência de feedbacks e de espaço para troca de opiniões, o assédio moral e a criação de metas inatingíveis.
“No modelo convencional, uma das práticas mais comuns envolve exigências abusivas de produtividade aliadas a metas demasiadamente elevadas”, afirma Maria Elizabeth Antunes Lima, doutora em sociologia do trabalho pela Universidade de Paris.
“No remoto, os profissionais se sentem obrigados a dar respostas imediatas porque os meios de controle passaram a ser onipresentes e as empresas ficam mais à vontade para administrar seus empregados”, conclui.
Se até pouco tempo atrás, quando o trabalho ainda era predominantemente presencial, o tema da saúde mental já era motivo de preocupação, hoje em dia, com a consolidação do modelo a distância após a pandemia da Covid-19, tornou-se um grito de alerta.
Os rivais do bem-estar
Os problemas psíquicos que podem começar ou se agravar no trabalho
Estresse crônico: o estresse é um mecanismo natural de defesa do organismo. Mas, em doses altas ou persistentes, pode trazer graves danos — emocionais e físicos.
Ansiedade: é aquela sensação constante de que é preciso fazer algo ou alguma coisa está errada. Se persistir por mais de seis meses, procure um médico.
Depressão: estado de angústia permanente que chega a fazer algumas pessoas não saírem da cama. É diferente, portanto, de tristeza, um sentimento passageiro.
Pânico: o transtorno é marcado por crises com falta de ar ou taquicardia, que precisam ser socorridas. Situações estressantes no emprego podem contribuir para o quadro.
Burnout: é a exaustão física, mental e emocional diretamente ligada ao trabalho. Exige apoio médico e psicológico — e compreensão e respaldo da empresa.
O tamanho do problema
Um estudo recente da Fundação Getulio Vargas (FGV) com 464 participantes mostra que 56% tiveram dificuldades para equilibrar a vida pessoal e a profissional durante a pandemia. E 48% relataram aumento da carga de trabalho.
“Um dos problemas do modelo remoto é a dificuldade de separar o tempo dedicado ao emprego daquele dedicado ao descanso, ao lazer e à convivência familiar”, nota a psicóloga Renata Paparelli, doutora em psicologia social e do trabalho pela Universidade de São Paulo (USP).
“No atual cenário, em que os direitos trabalhistas também estão ameaçados, as pessoas se submetem a qualquer coisa para não perder o emprego, e trabalham em espaços improvisados ou sob condições adversas”, avalia.
Mas digamos que mesmo quem labuta em ritmo ou local mais apropriados sentiu o baque com a pandemia. Uma pesquisa da Ipsos realizada para o Fórum Econômico Mundial, a One Year of Covid-19, revela que 53% dos brasileiros relataram piora em seu estado psicológico.
Os maiores inimigos do bem-estar foram o estresse — desencadeado por mudanças na rotina de trabalho para 56% das pessoas — e a ansiedade (seis em cada dez estavam tensas por medo de perder o emprego). Na média global, 45% dos 21 mil entrevistados afirmaram que sua saúde mental entrou em pane no último ano.
“Trabalhar pode ser uma experiência enriquecedora. Mas também pode causar muito sofrimento”, afirma a psicóloga Carla Faiman, doutora pela USP e autora do livro Saúde do Trabalhador: Possibilidades e Desafios da Psicoterapia Ambulatorial.
“Vemos uma quebra dos laços de solidariedade no trabalho. O medo de perder o emprego intensifica a competitividade e a relação entre colegas passa a ser mais pautada por rivalidade do que por apoio mútuo”, observa. O ambiente tóxico, por sua vez, alimenta essa outra pandemia que anda ao lado da Covid-19: a dos transtornos mentais.
O número de licenciados por depressão e ansiedade no país aumentou 33,7% e passou de 213 mil, em 2019, para 285 mil, em 2020. Hoje é a terceira causa de afastamento do trabalho, atrás somente de lesões ocupacionais e de comprometimentos musculares, ósseos ou articulares. Se nenhuma providência for tomada, o estrago será incalculável.
“No Brasil, o adoecimento mental já vinha em um crescente. Mas, com a chegada da pandemia, tudo piorou”, sentencia a médica Rosylane Rocha, presidente da Associação Nacional de Medicina do Trabalho. “Por um lado, os trabalhadores não conseguem recuperar sua capacidade laboral por causa da cronificação da doença. Por outro, o aumento no número de casos de afastamento traz impactos negativos para a produtividade da empresa”, resume.
A pesquisa Os Impactos da Saúde Mental no Trabalho do Colaborador Brasileiro, realizada com 488 profissionais do setor, corrobora a tese de que a epidemia de transtornos psíquicos não compromete apenas a saúde do trabalhador.
Além da queda de produtividade (36,6%), outros danos são a falta de engajamento (23,3%) e o crescimento da rotatividade (19,6%). “Só que a saúde mental ainda é tabu na maioria das empresas”, aponta Alexandre Pellaes, mestre em psicologia do trabalho pela USP. “Muitas preferem fazer vista grossa a enfrentar o problema. Enxergam a pessoa como doente, e não o sistema como tóxico”, critica o psicólogo.
Luzes no túnel
A situação, porém, está começando a mudar. O número de empresas que têm alguma iniciativa voltada ao bem-estar mental de seus funcionários só cresce. Segundo levantamento da consultoria Mercer Marsh, saltou de 34%, em 2015, para 46%, em 2019.
“O primeiro passo é criar um ambiente em que as pessoas se sintam confortáveis para se expor diante das outras sem medo de serem julgadas ou punidas. A isso damos o nome de segurança psicológica”, explica a psicóloga organizacional Edwiges Parra, da consultoria Emind Mente Emocional. “Algumas empresas já entenderam que, se não estiverem engajadas na promoção da saúde mental, estão fadadas a sumir do mercado. É um caminho sem volta”, diz.
Algumas das ações mais disponibilizadas pelas 611 empresas ouvidas na pesquisa da Mercer Marsh foram massagens (53%), programas de assistência (49%), salas de descompressão (28%), meditação (17%) e atendimento psicológico (16%).
Renata Rivetti, diretora da consultoria de felicidade corporativa Reconnect, aponta outras iniciativas, como a criação de espaços de trocas positivas, como um clube de leitura, para conectar mais as pessoas, e de break times, um tempo livre demarcado na agenda.
“Sim, dá para ser feliz no trabalho. Mas, para termos um ambiente mais produtivo e prazeroso, precisamos de um trabalho que nos desafie e tenha um propósito. Se for algo muito fácil de ser feito ou que não tenha a ver com nossos valores, ficaremos apáticos e desmotivados”, argumenta Renata.
Boas práticas
Dá pra transformar um ambiente pesado num lugar acolhedor. Veja o que cabe a líderes e liderados
Empresa
+ Realismo saudável: não dá para sobrecarregar a equipe com prazos e metas inalcançáveis. Colaboradores infelizes adoecem mais e derrubam a produtividade de qualquer companhia.
+ Diálogo é tudo: bão basta oferecer sessões de massagem e meditação. É essencial ouvir o que os funcionários têm a dizer. Estimule conversas e feedbacks. E pergunte como tornar o ambiente mais empático.
+ Respeito ao horário: não marque reuniões na hora do almoço nem mande mensagens ou e-mails antes das 9 ou depois das 18h. Lembre-se: sábados, domingos e feriados foram feitos para o descanso.
+ Orientação mental: promova e distribua conteúdos sobre saúde emocional. E instrua as equipes a identificarem os primeiros sinais de ansiedade, depressão ou burnout. Fornecer assistência psicológica também é bem-vindo.
Funcionário
+ Organize-se: estabeleça prioridades. Se possível, só comece a executar uma tarefa depois que tiver concluído a anterior. Isso aumenta as chances de fazer as coisas bem feito — e a não se desesperar.
+ Cuide de você: estabeleça os limites entre a vida profissional e a pessoal. Fora do expediente, alimente-se bem, durma direito, faça exercícios e procure relaxar. A chefia tem que entender essa fronteira.
+ Faça pausas: a cada 90 minutos trabalhados, descanse entre dez e 15. Mas, durante o trabalho, evite distrações. Desligue as notificações do celular ou feche as redes sociais. Mantenha o foco!
+ Converse sempre: se algo (ou alguém) o incomoda, procure verbalizar sua insatisfação. Muitas vezes, o outro não sabe que está sendo tóxico. Se não der certo, procure o RH e conte o que aconteceu.
Mudança de página
As iniciativas também vão além de rodas de conversa ou sessões de ioga. A Ambev investiu, entre outras ações, em aplicativos de saúde mental, como ZenKlub e Caliandra. O primeiro oferece sessões de terapia online e o segundo, suporte em emergências psiquiátricas.
“Nosso objetivo é garantir um ambiente onde as pessoas possam desenvolver um sentimento de pertencimento e se tornar mais felizes por enxergar que estão fazendo a diferença”, afirma Mariana Holanda, head de Saúde Mental, Diversidade e Inclusão do grupo.
O número de empresas que, a exemplo da Ambev, contrataram serviços de psicoterapia virtual aumentou 580% no último ano. “O aplicativo da Vitalk conta com conteúdos e exercícios que podem ser acessados a qualquer hora e em qualquer lugar. Um deles ensina o usuário a fazer uma técnica de respiração de três minutos”, exemplifica Michael Kapps, CEO e cofundador da empresa especializada em saúde mental.
A Vitalk é um dos parceiros do movimento Falar Inspira Vida, idealizado pela Janssen e que acaba de lançar o guia Depressão — Como Acolher no Ambiente de Trabalho, com conselhos para criar um ambiente empático e agir no dia a dia.
“Queremos promover uma mudança no tom da conversa sobre depressão. Por meio do correto entendimento da doença, que não é frescura nem falta de vontade, a sociedade estará mais bem preparada para acolher as pessoas que sofrem”, sintetiza Patrícia Queijo, diretora de RH da Janssen.
Para outra farmacêutica, a GSK, uma das principais apostas foi a realização de seminários virtuais focados na saúde em geral e sobretudo no bem-estar mental. Entre outros resultados, a companhia registrou queda de 50% no risco de burnout nos colaboradores.
“Nosso propósito é ajudar as pessoas a se sentir melhor e a viver mais. Então precisamos começar por nós mesmos”, justifica Marina Tavares, gerente do Programa de Saúde e Bem-Estar da empresa.
Já a Unilever instituiu, em tempos de home office, as “regras de ouro”. Os gestores são orientados a não agendar reuniões no horário de almoço ou depois das 18h. E, às sextas, as reuniões só devem ocorrer pela manhã, e, entre uma e outra, é recomendado um intervalo mínimo de dez minutos.
“A saúde do colaborador é fundamental para a saúde da empresa”, crava Ana Paula Franzoti, diretora de Desenvolvimento Organizacional e Cultura da gigante de bens de consumo. “Fazendo o que gostam, as pessoas prosperam, tanto pessoal quanto profissionalmente.”
A executiva Dyene Galantini sabe melhor que ninguém como uma rotina estressante de trabalho mexe com a saúde mental. Há 20 anos, ela recebeu o diagnóstico de transtorno bipolar. Durante as crises depressivas, sentia-se no fundo do poço. Não tinha ânimo para levantar-se da cama, escovar os dentes ou tomar banho.
Durante os picos de euforia, sentia-se no topo do mundo. Quase não conseguia dormir — virava as noites trabalhando. “Comparo a euforia à sensação de ganhar na loteria. E a depressão ao desinteresse de buscar o prêmio”, diz a autora do livro Vencendo a Mente. Em uma de suas piores crises, ela chegou a pensar em suicídio e a ser internada por 12 dias em uma instituição psiquiátrica.
Desde então, Dyene não só mantém o acompanhamento médico e psicológico como redobrou os cuidados para não sofrer no trabalho. Evita expedientes de longas horas, recusa prazos impossíveis e aprendeu a impor limites, com frases do tipo “Agora estou jantando” ou “Hoje é sábado!”.
“Levo meu transtorno muito a sério. No meu caso, gerenciar o estresse não é opção, é questão de sobrevivência”, afirma. Convenhamos que talvez não seja só o caso dela.
Fonte: Veja Saúde