Data: 27 de janeiro
A família da agricultora Marineide Castro está recomeçando. Ela, que foi “nascida e criada na agricultura orgânica”, teve que desistir por cinco anos de plantar alimentos sem agrotóxicos por falta de apoio e assistência, após os pais saírem da fazenda em que trabalhavam.
“Não tinha ninguém que plantava produtos orgânicos na região e não achávamos a quem vender. Quando tentamos vender na rua, a fiscalização não deixou. Daí começamos a praticamente a dar de graça para os atravessadores: vendia o quilo do feijão, do milho e do quiabo orgânicos por R$ 0,50. Não íamos deixar desperdiçar. Não tínhamos apoio de ninguém. Os amigos nos diziam: larguem de ser bobos, vão ficar sofrendo”, relata.
Sua família, que até hoje arrenda a terra para trabalhar [uma espécie de aluguel, situação extremamente comum entre os pequenos produtores], chegou a pagar por um pedaço de roça, que nunca existiu. Sem dinheiro e perspectiva, por fim, eles se renderam ao uso dos insumos químicos. Mas o resultado foi desastroso: seu pai faleceu, após desenvolver um câncer de pele e uma infecção respiratória provocada pela exposição desprotegida ao agrotóxico. Marineide voltou para a prática orgânica, mas um cunhado, que continuou com a prática convencional, quase morreu. Após sofrer uma intoxicação aguda (com alergias, desmaios e vômitos) há um ano, ele luta contra um hematoma no fígado.
“Infelizmente, isso serviu de exemplo: o veneno fazia com que a gente produzisse mais quantidade, também o custo diminuía, porém, a gente gastou muito com meu pai – e não tivemos resultado. E hoje estamos gastando muito com o meu cunhado e ele quase faleceu, mas, graças a Deus, voltou para a casa”, diz. Marineide agora está começando a buscar apoio do Projeto PAIS – Produção Agroecológica Integrada e Sustentável, e não perde a esperança de que os filhos e irmãos agricultores que foram para a cidade, e estão “passando necessidade”, voltem um dia para o campo. “Não tem sido fácil produzir orgânico para a gente. Mas vamos conseguir”.
Sinais do modelo
Situações semelhantes às que a família de Marineide viveu fazem parte da rotina de milhares de trabalhadores rurais no Brasil. “O uso massivo de agrotóxicos está diretamente relacionado com a doença. As pessoas que produzem no campo estão todas contaminadas”, afirma Maria Kazé, da coordenação nacional do Movimento dos Pequenos Agricultores – MPA (confira o depoimento dela na íntegra).
A pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Cesteh/Ensp/Fiocruz) Karen Friedrich afirma que a contaminação por agrotóxicos é generalizada. “[O trabalhador] é exposto através de uma mistura de agrotóxicos e em quantidades muito elevadas. Quando ele aplica numa lavoura, muitas vezes aplica mais de um agrotóxico ou então ocorre a pulverização aérea e quem mora ali perto também recebe essa grande carga de agrotóxicos. Além disso, quem está na cidade ingere o alimento com algumas dezenas de diferentes agrotóxicos, às vezes em um único alimento”, explica.
Casos de óbito por agrotóxicos, como o do pai de Marineide, sinalizam o esgotamento de um modelo de produção agrícola subsidiado pelo estado brasileiro, segundo a pesquisadora do Departamento de Saúde Comunitária da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFCE), Raquel Rigotto. Ela diz que esses casos “exprimem de uma forma muito forte a falência na garantia do direito constitucional à saúde e uma análise mais aprofundada vai nos mostrar que isto está relacionado a uma cadeia de violações que se inicia desde o modelo de desenvolvimento agrícola adotado nas políticas públicas brasileira no momento atual”, enfatiza.
Rigotto elenca uma série de indicativos de que o Brasil vem optando pela manutenção e ampliação deste sistema, entre eles o financiamento público, através do BNDES, e as isenções fiscais e tributárias, concedidas pelo governo federal e por alguns estados. é o caso da redução de 60% para todos os agrotóxicos, na cobrança da alíquota do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), concedida através do convênio 100/97, e renovado 16 vezes. A última, em outubro, estendeu a validade do convênio até o final de abril de 2017. Em alguns estados, como o Ceará, a isenção fiscal chega a 100%. “Do nosso ponto de vista, é um escândalo na saúde pública produtos como esse não ter taxação”. A pesquisadora analisou ainda a dura realidade dos pequenos agricultores e dos trabalhadores rurais no país.
O estímulo aos agrotóxicos data de 1965, quando foi criado o Sistema Nacional de Crédito Rural, que vinculava à concessão de crédito agrícola à obrigatoriedade da compra de insumos agrícolas químicos pelos agricultores. Já no início dos anos 1970, o Banco do Brasil tornou obrigatório o direcionamento de 15% do valor dos empréstimos de custeio para a aquisição de agrotóxicos. Enquanto, em 1975, foi a vez do Programa Nacional de Defensivos Agrícolas financiar a criação de empresas nacionais e a implementação de subsidiárias de corporações transnacionais de agrotóxicos e fertilizantes. Atualmente, cerca de 130 empresas atuam no setor de agrotóxicos no Brasil, mas o mercado é controlado por dez multinacionais, que responderam juntas por 75% das vendas na safra de 2012/2013, segundo dados da Anvisa.
Nas entranhas do Poder
A bancada ruralista é o nome oficioso dado ao grupo de políticos que atuam em defesa dos proprietários rurais, independentemente do partido. A maioria compõe a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), fundada formalmente em 1995, mas possui também outros parlamentares alinhados aos seus interesses. Ao menos 109 deputados e 17 senadores são membros da bancada ruralista, conforme contabilizou a publicação “Radiografia do Novo Congresso”, do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap). A própria Frente diz reunir mais de 200 parlamentares, de composição pluripartidária.
A FPA é combativa quando se trata das políticas em torno dos agrotóxicos. Um dos últimos lobbies bem-sucedidos do grupo foi a liberação do ingrediente ativo não registrado benzoato de emamectina, substância usada como agrotóxico emergencial contra a lagarta Helicorvepa amigera, considerada praga em diversas lavouras, como as de soja, milho e algodão. O benzoato teve o registro negado em 2007 pela Anvisa, por ser considerado tóxico ao sistema neurológico – em todas as pesquisas feitas, a substância causou efeitos neurológicos nas espécies testadas tais como tremores, redução da capacidade motora, dilatação da pupila (midríase), alteração nos tecidos e degeneração neuronal.
No entanto, desde abril de 2013, o Ministério da Agricultura desconsiderou as negativas dos outros dois órgãos responsáveis pela liberação de agrotóxicos (Anvisa e Ibama) e decretou estado de emergência fitossanitária ou zoosanitária em todo o Brasil, permitindo a liberação do ingrediente ativo.
Mas o benzoato está longe de ser a maior ameaça à redução do uso de agrotóxicos no Brasil. Está em tramitação na Câmara de Deputados o Projeto de Lei 3200/2015, que revoga a atual Lei de Agrotóxicos, e cria um marco regulatório que facilita o registro, deixando-o nas mãos da Comissão Técnica Nacional de Fitossanitários – CTNFito, cujos membros serão designados pelo Ministério da Agricultura.
Esta comissão deverá funcionar nos moldes da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio, que até hoje não negou nenhum registro de semente transgênica no Brasil. Vale ressaltar que todas estas sementes liberadas no Brasil foram modificadas para serem tolerantes a herbicidas e/ou resistentes a insetos/vírus. Ou seja, na prática, representam mais agrotóxicos nas lavouras. Ao menos é o que diz o Dossiê Abrasco, citando o caso da introdução da Roundup Ready (RR), semente de soja transgênica produzida pela Monsanto, que fez com que “fosse necessário que a Anvisa aumentasse em 50 vezes o nível de resíduo de glifosato permitido no grão colhido”, informa o documento. A semente RR é resistente ao Roundup, agrotóxico à base de glifosato, também produzido pela multinacional americana.
Neste depoimento extraído do documentário Nuvens de Veneno (produção uma parceria da VideoSaúde Distribuidora da Fiocruz, com a Secretaria de Saúde de Mato Grosso e a produtora Terra Firme, realizado em 2013), o agricultor Celito Trevisan fala sobre a dificuldade de se cultivar produtos orgânicos próximo a uma lavoura de transgênicos.
Até mesmo um programa de uma política federal de estímulo à produção familiar agroecológica já consolidada, a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO), corre o risco de não sair do papel devido a pressões políticas. Trata-se do Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pronara), adiado por tempo indeterminado às vésperas da última previsão de lançamento, em novembro.
O caso do Pronara
O Pronara foi considerado um avanço por ser o primeiro instrumento que obriga legalmente nove ministérios (Desenvolvimento Agrário, Saúde, Agricultura, Desenvolvimento Social, Ambiente, Trabalho e Emprego, Fazenda, Ciência e Tecnologia, Educação, além da Secretária Geral da República) a tomarem ações concretas contra os agrotóxicos. Apesar de ter sido elaborado com o aval do Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), o programa foi adiado após o pedido da ministra de Agricultura Kátia Abreu de rever o documento, elaborado na gestão do seu antecessor.
O Programa de Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pronara) foi aprovado em agosto de 2014, como parte da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, após meses de elaboração de um grupo de trabalho formado por diversos especialistas, vinculados a instituições de pesquisa e ensino, órgãos do governo e organizações da sociedade civil. O Programa é constituído por seis eixos: Registro; Controle, Monitoramento e Responsabilização da Cadeia Produtiva; Medidas Econômicas e Financeiras; Desenvolvimento de Alternativas; Informação, Participação e Controle Social e Formação e Capacitação. No total, são previstas 137 ações concretas que visam frear o uso de agrotóxicos no Brasil. Dentre elas, medidas como o fim da isenção fiscal, implantação de zonas livres de agrotóxicos e transgênicos e a reavaliação de produtos banidos em outros países.
O pesquisador do Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana (CESTEH) da Ensp/Fiocruz, Marcelo Firpo Porto, acredita que apesar das limitações do Programa, este é foi um avanço, “com pontos muitos estratégicos”. “A crise do atual governo federal, o aumento da pressão de grupos conversadores e a instabilidade do governo têm gerado retrocessos importantes em vários setores envolvendo a regulação dos agrotóxicos e avanço da agroecologia”, avalia.
No entanto, apesar da “tendência conservadora”, ele acredita que uma saída para acelerar os avanços propostos são as legislações municipais e estaduais. “Eu acho que a gente vai passar por uma onda em que os avanços vão continuar em lutas mais capilarizadas, em que é possível a realização por forças aglutinadas. Neste contexto, talvez seja possível a criação de zonas livres de agrotóxicos em alguns municípios e promovido por estados, principalmente em função da crise hídrica e da proteção de mananciais, que é um tema que ainda vai continuar por décadas no Brasil”.
Moradora do assentamento Zumbi dos Palmares, em Campos do Goytacazes (RJ), Viviane Ramiro, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), ressalta a necessidade de que as políticas já consolidadas cheguem a todos os trabalhadores do campo, como Marineide. Segundo ela, há uma dificuldade de se obter políticas públicas favoráveis para os já assentados, inclusive de assistência técnica rural (ATER). “Se a nível federal estas políticas já estão se consolidando, a gente não percebe isso no nível local. São políticas que atendem apenas a uma minoria”, afirmou.
A presidente da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA-Agroecologia) e professora da Universidade Federal de Viçosa, Irene Maria Cardoso, afirma que a Política Nacional de Agroecologia “está caminhando dentro das possibilidades que a sociedade brasileira construiu”: “A gente vai aprofundando e avançando com o tempo. é um processo. As coisas não acontecem de um dia para o outro. Então têm recuos”, diz.
Contudo, ela enfatiza a necessidade de lançar o Programa. “é uma questão urgente, porque ele nem coloca aquilo que a agroecologia de fato acredita: o banimento do uso dos venenos. Coloca uma proposta de redução, num processo de transição. A quantidade bruta de agrotóxicos no Brasil é a maior do mundo. Então, o Brasil vai continuar neste quadro? é isso que nós queremos: continuar envenenando as pessoas, as águas, os animais?”
(Fonte: Icict/Fiocruz)