Data: 23 de novembro
Dia 13 de abril de 2015, uma segunda-feira. O que parecia mais um dia normal na vida do caldereiro Aristeu Aguilhera Vargas, de 51 anos, ia mudar para sempre sua vida. Trabalhando há cinco anos em uma indústria de alimentos de Nova Alvorada do Sul, a 120 quilômetros de Campo Grande, onde fazia reparos e confeccionava coifas e tubos metálicos, menos de duas horas depois de iniciar o expediente ele sofreria um grave acidente de trabalho que levaria a amputação do seu pé e de parte de sua perna direita.
O acidente, segundo Aristeu, ocorreu no setor de beneficiamento de arroz da indústria. Atendendo uma determinação do seu gerente, ele se preparava para trabalhar na tubulação para a aspiração de pó da caixa de alimentação da selecionadora do cereal. Apesar de insistir com seu chefe para ter um ajudante na tarefa, sob ameaça de uma advertência, fazia o trabalho sozinho, a 4,70 metros de altura, em cima de uma escada e com a perna apoiada sobre o transportador do cereal. A proteção sobre o transportador que apesar de vazio estava ligado, cedeu, e a perna dele caiu dentro do equipamento, que possui uma espécie de “rosca” sem fim.
Quando o pé dele caiu dentro da rosca foi imediatamente dilacerado, junto com parte da perna. Aristeu ainda se segurou para não ser totalmente sugado pela máquina enquanto gritava por socorro. Outros funcionários apareceram, mas o botão de emergência para desligar o transportador não funcionou. O equipamento só parou quando a “rosca” ficou “engasgada” com a perna do trabalhador. Socorrido pelos próprios colegas, já que não havia no local nem equipe habilitada a lhe prestar os primeiros socorros nem ambulância, foi levado no carro de um funcionário do setor de recursos humanos (RH) da empresa para o hospital do município, onde depois de um rápido atendimento foi encaminhado para a Santa Casa de Campo Grande.
Na capital do estado foram 26 dias de internação. No hospital sofreu um infarto e passou por três operações na perna atingida, em razão da própria gravidade da amputação que ocorreu na máquina, da necrose de tecidos e de uma infecção bacteriana. Sem nenhum tipo de auxílio por parte da empresa em que trabalhava em todo o período pós-acidente, a não ser o socorro no local, o caldereiro acionou a Justiça do Trabalho, para requerer além de uma pensão vitalícia, que já foi concedida em caráter liminar pela Vara da Justiça do Trabalho de Rio Brilhante, ainda indenização pelos danos morais, estéticos e emergentes, entre outros que ele sofreu e ainda sofre. A decisão sobre a indenização, bem como a confirmação ou não da continuidade do pagamento da pensão que foi determinada pela tutela antecipada ainda será avaliada no julgamento do mérito do processo.
Casos como o de Aristeu, segundo o advogado dele, Gutemberg Vargas, são exemplos do descaso com que a questão da segurança do trabalho ainda é tratada com por algumas empresas.
Especialista em causas que envolvam acidentes de trabalho, o advogado explicou que no caso da indústria de alimentos em que ocorreu o acidente com o caldereiro, a empresa já havia sido notificada 46 vezes sobre irregularidades nesta área pela fiscalização do Ministério do Trabalho e Previdência Social. “Não precisa ser um especialista no assunto para chegar a conclusão, só com base nesse número de autuações do Ministério do Trabalho, que aquela empresa era um local perigoso para se trabalhar”, avalia.
No caso do acidente com Aristeu, Vargas comenta que a empresa deixou de cumprir uma série de medidas previstas nas chamadas Normas Regulamentadoras, as NRs. Essas normas, definidas pelo Ministério do Trabalho apresentam um conjunto de requisitos e procedimentos relativos à segurança e medicina do trabalho, que devem ser obrigatoriamente cumpridas pelas empresas privadas, públicas e órgãos do governo.
“Neste caso, por exemplo, podemos citar que a empresa deixou de cumprir a NR12, que trata da obrigatoriedade de fornecer treinamento para o trabalho em máquinas e equipamentos, e a NR35 que versa sobre o trabalho em altura, estipulando que naquela situação ele deveria ter um andaime para trabalhar e não uma escada. Isso, sem falar de outros aspectos da própria NR12, da NR4, da NR18 e da NR13, que não foram cumpridos pela empresa e que acabaram motivando os autos de infração do Ministério do Trabalho”, explica o advogado.
Como resultado deste descumprimento, a peça mais frágil da engrenagem produtiva, justo o trabalhador, neste caso Aristeu, acabou sendo atingida. “Me senti abandonado depois do acidente. Me falaram [a empresa] que não iam ajudar no hospital porque depois me dariam toda a assistência, mas nunca ninguém foi até o hospital, até minha casa, ou procurou alguém da minha família para saber como eu estava e se precisava de alguma coisa. Depois que sai do hospital entrei em depressão. Não consegui mais sair de casa. Tenho vergonha do que as pessoas vão pensar ou falar de mim. Estou fazendo tratamento com psicólogo. Fora isso, enfrentei muitas dificuldades financeiras. O auxílio-doença que recebo da previdência [Instituto Nacional de Seguridade Social] não é suficiente para cobrir as despesas, porque além de trabalhar na empresa eu fazia uns bicos como pedreiro e pintor. Com o acidente tudo isso acabou e eu tive despesas que não tinha, como as com remédios. Até que conseguisse a pensão que é paga pela empresa tive que apelar para empréstimos das pessoas da família, para conseguir me manter”, recorda.
Nesta sexta-feira, 13 de novembro, faz seis meses que o acidente ocorreu. Aristeu, que antes de perder a perna tinha uma vida pessoal ativa, com participação, inclusive, nas atividades da congregação religiosa que frequentava, sonha agora principalmente com uma prótese. O pedido é uma das demandas da ação trabalhista contra a empresa. “Com uma prótese vou poder sair de casa, fazer uma caminhada. Hoje não posso, não consigo, as muletas são muito desconfortáveis. No futuro penso em usar esse espaço que tenho na minha casa, para abrir algum tipo de negócio, alguma coisa que ajude no sustento da casa, porque sei que é difícil trabalhar com antes, fazendo as coisas que eu adorava. Mas eu não quero e não vou ficar parado”, afirma.
Aristeu foi uma das 1.974 pessoas que recorreram ao auxílio-doença em razão de acidentes de trabalho no primeiro semestre de 2015 em Mato Grosso do Sul, segundo dados da Superintendência Regional do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Para o pagamento destes benefícios o volume de recursos empregados chegou aos R$ 2,2 milhões. Na comparação com o mesmo período de 2014, o número destes benefícios concedidos pelo órgão, 2.457, teve uma queda de 19,66% enquanto que o desembolso, que foi de R$ 2,4 milhões, caiu 11,61%.
Assim como o caldereiro de Nova Alvorada do Sul, entre janeiro e setembro deste ano, 2.730 pessoas acionaram a Justiça após sofrem acidentes de trabalho em Mato Grosso do Sul, conforme levantamento do Tribunal Regional do Trabalho do estado (TRT/MS). A média foi de dez novos processos por dia, nestes nove meses de 2015. Esse número de ações representou 10,12% do total de novos processos trabalhistas impetrados neste ano. As cidades com maior número de ações foram: Campo Grande, com 1.160; Dourados, com 471; Três Lagoas, com 223; Nova Andradina, com 123 e Rio Brilhante, com 115.
Conforme o TRT/MS, as varas de primeira instância julgaram e solucionaram nestes nove meses de 2015 um total de 1.773 processos. Uma destas ações foi a do ajudante de produção Willian Roberval Garcia da Silva, de 25 anos, da cidade de Coxim, a 253 quilômetros de Campo Grande. Trabalhando há pouco mais de um ano no setor de graxaria de um frigorífico do município, sofreu em 22 de janeiro deste ano, a exemplo de Aristeu, um sério acidente de trabalho, que levou a amputação de um dos seus membros, no caso, o braço esquerdo. Incapacitado permanentemente para o trabalho, ele decidiu procurar a Justiça para a obtenção dos seus direitos.
Willian conta que ia colocar material no equipamento que fazia o transporte dos restos dos animais abatidos no frigorífico, como cabeças, gorduras e patas, até uma máquina chamada quebrador, onde ocorria a moagem completa destes itens, que depois eram encaminhados a outra unidade da graxaria. Ele explica que no momento em que fazia esse procedimento seu braço acabou ficando preso entre a hélice da rosca da transportadora e a carcaça do equipamento, e que neste instante a máquina amputou seu braço e começou a puxá-lo. “Me lembro exatamente do momento em que meu braço quebrou e a máquina começou e me puxar. Com muito esforço, consegui soltar o braço. Como estava trabalhando sozinho, ainda desliguei a máquina antes de subir até o RH da empresa em busca de socorro”, recorda.
No momento do acidente, o ajudante de produção diz que não havia equipe habilitada e nem uma ambulância para socorrê-lo, e que apenas um outro funcionário fez um torniquete e o encaminhou em um carro para um hospital da cidade, de onde foi transferido para a Santa Casa de Campo Grande. No hospital, permaneceu internado por 15 dias e foi submetido a duas cirurgias.
No caso de Willian, que também foi defendido por Vargas no processo contra a empresa, foi requerida uma indenização que contemplava os danos morais, estéticos e ainda as chances de trabalho perdidas em razão do acidente, além de uma pensão vitalícia. Houve em julho deste ano um acordo com a empresa para o pagamento da indenização e da pensão. Segundo o advogado da vítima, o frigorífico descumpria uma série de normas regulamentadoras, como falta de ambulância e de equipamentos de proteção individual, entre outros.
O valor da indenização, conforme o advogado, possibilitou que a família comprasse uma casa e melhorasse as condições de vida, já que somente com o benefício pago pelo INSS a situação financeira do ajudante de produção, de sua esposa e filhas era difícil.
Com a vitória na Justiça Trabalhista, Willian conta que agora tenta virar a página do acidente e seguir em frente. “Estamos tentando conseguir uma prótese. Quero agora terminar os estudos, já que só fiz até a oitava série [oitavo ano do Ensino Básico]. Quero me formar e trabalhar em alguma coisa. Estou mais tranquilo, acho que o pior já passou”, comenta o trabalhador.
O especialista em ações judiciais sobre acidentes no trabalho diz que essas ocorrências nunca são provocadas por um fato isolado e sim por uma série de fatores, que sempre estão atrelados ao desrespeito a legislação da área. “Os fatores que mais causam acidentes de trabalho são: a falta de treinamento dos trabalhadores, a falta de equipamentos de proteção individual (EPIs), a falta de medidas de proteção e a falta de atuação na prevenção, entre outras”, explica o advogado.
“Prevenir sempre é mais barato do que remediar. Em um acidente de trabalho todos saem perdendo. O trabalhador, a empresa e o Poder Público, que vai ter que arcar com o custo do atendimento a esse trabalhador e depois com seu benefício previdenciário”, analisa, completando que quando ocorre um acidente e o trabalhador acaba acionando judicialmente a empresa, a análise destes processos não deve ter apenas componentes reparatórios e indenizatórios, mas também pedagógicos. “Quando um juiz do trabalho estipula uma sentença, ele não está apenas determinando um valor para reparar o dano que o acidente causou ao trabalhador, ele também está mandando uma mensagem a outras empresas, que é mais interessante atender a lei, prevenir os acidentes, do que ser penalizada pela Justiça pelo seu descumprimento. Por isso, a Justiça tem de ser sempre firme na análise destes processos”, afirma.
(Fonte: G1)