Desde o médico italiano Bernardino Ramazzini (1633-1714), referência paradigmática luminosa dos compromissos – sinceros e vigorosos – da Medicina com a causa da saúde dos trabalhadores, poucas pessoas no mundo conseguiram se destacar com similar brilho e eficácia quanto o médico italiano Giovanni Berlinguer, falecido no último dia 6 de abril, em Roma. Tal como Ramazzini, Berlinguer foi muito mais do que “apenas” um bom médico, e sim, um cidadão, um militante, um político, um cientista engajado, participante ou protagonista das principais lutas do povo italiano, na esfera de direitos civis, do Direito Sanitário e da reforma do Sistema de Saúde, dos direitos trabalhistas, da Bioética e da autêntica participação democrática, entre outras áreas temáticas de interesse e luta. Sua visão de mundo o levou a contribuir com lutas similares em muitos países do mundo, muito especialmente no Brasil.
é muito difícil sumarizar uma biografia tão longa, tão complexa e tão profícua, porém sua coerência permeia a longa trajetória – viveu 90 anos -, combinando, de forma rara, crescente maturidade, com a renovação contínua do seu vigor e de seus compromissos com a utopia. Viveu sonhando (não o contrário). Foi importante promotor da Reforma Sanitária Italiana, cujo marco emblemático – Lei no. 833, de 23 de dezembro de 1978, intitulada Istituzione del Servizio Sanitario Nazionale – veio a se tornar referência obrigatória de movimentos similares, como no Brasil, inspiradora do movimento sanitário nacional que culminou com a criação do Sistema único de Saúde – SUS, em nosso país, e com a constituição do campo da Saúde do Trabalhador.
Na militância política, muito cedo se filiou ao Partido Comunista Italiano – PCI (juntamente com seu irmão Enrico Berlinguer, o qual chegou à presidência do partido), ajustando-se, mais diante, às novas formatações de forças políticas na Itália, até se filiar ao partido da Esquerda Democrática (SD). Foi deputado italiano por três legislaturas; senador por mais duas legislaturas, e, com mais de 80 anos de idade, foi eleito parlamentar europeu (Estrasburgo), onde foi membro do Partido Socialista Europeu. No parlamento europeu, foi membro da Comissão de Educação e Cultura e membro-substituto da Comissão de Assuntos Ambientais, de Saúde Pública e de Segurança Alimentar.
Em cargos e funções técnico-administrativas ou políticas em seu país, o Prof. Berlinguer coordenou o Plano Nacional de Saúde, após a Reforma Sanitária; foi Vice-Presidente (1992-1995) e Presidente (1999-2001) do Comitê Nacional de Bioética e membro do Conselho Nacional de Saúde (1994-1996). Na esfera internacional, participou do Comitê de Bioética da UNESCO (2001-2007) e da Comissão de Determinantes Sociais de Saúde, da Organização Mundial da Saúde (2005-2008).
Personalidade de destaque na cultura italiana, o Prof. Berlinguer contribuiu em sua atividade docente, desde o ensino da Medicina Social na Universidade de Sassari (Sardenha), até a Cátedra de Saúde no Trabalho (anteriormente denominada Higiene do Trabalho), na Universidade de Roma “La Sapienza”, onde lecionou de 1975 a 1999. Recebeu o título de Professor Honorário da Universidade Autônoma de Santo Domingo (1992); Doutor Honoris Causa da Universidade de Montreal (1996) e da Universidade de Brasília (1996) e o título de Professor Emérito da Universidade de Roma (2001).
Sua produção intelectual, nascida dos estudos, experiências e lutas em sua trajetória, e enriquecida pela longa vivência com a Central Geral Italiana de Trabalhadores – CGIL, levou-o a uma profícua produção de textos na forma de artigos e, principalmente, na forma de livros, a partir de seus primeiros textos Automazione e salute. Problemi medico-sociali del progresso tecnico (Instituto de Medicina Social, Roma, 1958) e La medicina È malata (a Medicina está doente), em 1959. Sua vasta produção estendeu-se por mais de 40 obras, algumas das quais foram traduzidas ao Português, graças, principalmente ao Centro Brasileiro de Estudos de Saúde – CEBES. Destacam-se obras que se tornaram paradigmáticas, tanto na Itália quanto no Brasil, como, por exemplo, Psiquiatria e Poder (Hucitec, 1976); Medicina e Política (Hucitec, 1978); A Saúde nas Fábricas (Cebes-Hucitec, 1983); A Doença (Hucitec, 1988); Questões de Vida – ética, Ciência e Saúde (Hucitec-Cebes, 1993); O Mercado Humano – Estudo da Compra e Venda de Partes do Corpo (Editora UnB, 1996, em parceria com o Prof. Volney Garrafa), entre outras obras.
A abrangência de temas, compromissos e atividades não o afastou de sua inserção original de dedicação ao campo da saúde dos trabalhadores – incluindo a Medicina do Trabalho – havendo se filiado à Comissão Internacional de Saúde no Trabalho – ICOH, em 1984, onde ocupou vários cargos e funções. No 28º Congresso da ICOH, realizado em Milão, em 2006 – quando se celebrou o centenário dessa entidade – ele foi eleito Membro Honorário da ICOH.
Para nós, brasileiros, há muitas boas recordações, não somente pela frequência com que, desde 1950, o Prof. Berlinguer visitava nosso país, como pelo enorme círculo de admiradores, leitores e estudiosos de suas obras, colegas dos campos da Saúde Coletiva, da Bioética – entre outros – e amigos.
Para a Associação Nacional de Medicina – ANAMT, cujos membros e dirigentes também participam deste imensurável círculo, haja vista as históricas interfaces com a Saúde do Trabalhador, a Saúde Pública, a Saúde Coletiva e a Medicina Social, há um especial registro de boas recordações e qualificada contribuição do Prof. Giovanni Berlinguer, quando, em 2002, a ANAMT o convidou para fazer uma das conferências magistrais no 27º. Congresso da ICOH, realizado no ano 2003, em Foz do Iguaçu. Naquele inesquecível evento internacional, com mais de dois mil participantes, o Prof. Berlinguer dissertou sobre o tema “O Desafio da Equidade em Saúde e Segurança no Trabalho: O Enfoque ético”. (Foi na 3ª; feira, dia 25 de fevereiro, às 9h da manhã… Como esquecer?) Com efeito, trabalhar pela saúde e segurança dos trabalhadores, apoiando a ANAMT e a ICOH, foram gestos consistentes com sua proverbial generosidade e com sua visão inclusiva e aberta para as grandes causas.
Não faltam, portanto, motivos para homenagear um grande homem, um grande médico, um grande humanista, um grande sonhador!
São Paulo, 8 de abril de 2015.
(Escrito pelo Prof. René Mendes, em nome do Presidente da ANAMT, Dr. Zuher Handar, da Diretoria da Associação, e de muitos discípulos, admiradores e amigos.)
Dr. Ruddy Facci e Dr. René Mendes, com o Prof. Berlinguer, no 28º Congresso da ICOH em Milão em 2006