Data: 2 de junho
A Copa de 2022, no Qatar, vai deixar um legado de sangue. Como se não bastasse o escândalo de corrupção protagonizado pela Fifa, o mundial marcado para daqui a sete anos no Oriente Médio está mergulhado em uma trama muito mais grave, envolvendo a morte em massa de trabalhadores em condições de trabalho que beiram a escravidão. E o pior: tudo com a conivência das autoridades locais. Mesmo faltando tanto tempo, os números já são assustadores. Mais de mil operários, a maioria imigrantes, perderam suas vidas nos canteiros de obras. Se nada for feito e a média for mantida, a expectativa é que mais de 4 mil pessoas morram até a Copa do Qatar, segundo o relatório da International Trade Union Confederation (ITUC). A secretária-geral Sharan Burrow, que conversou com o Jornal do Brasil, apresentou detalhes do relatório.
Para começar, a transparência inexiste no país quando o assunto é o direito dos trabalhadores estrangeiros. O governo não publica estatísticas sobre a situação dos imigrantes no país. De uma população total de cerca de 2 milhões, a força de trabalho migrante gira em torno de 1,4 a 1,5 milhões.
O Catar tem um acordo com 30 nações que oferecem mão-de-obra barata. Dois países, Nepal e índia, respondem por mais de metade do total de trabalhadores migrantes. A DLA Piper, empresa de advocacia contratada pelo governo do Catar para avaliar a situação, relata que os cinco principais países de origem desses trabalhadores são índia, Nepal, Filipinas, Bangladesh, e Sri Lanka. A força de trabalho migrante está sendo aumentada com o objetivo de cumprir os prazos do programa de infra-estrutura para a Copa. Autoridades falam em “dezenas de milhares” de novos trabalhadores, com algumas estimativas que chegam a um total de 500 mil.
A construção civil e suas atividades paralelas respondem pela grande maioria do trabalho dos migrantes. Os operários da construção costumam ser homens, com idades entre 20 e 30 anos. O Catar exige que esses trabalhadores passem por uma avaliação antes de migrarem, para detectar doenças, lesões, e deficiências, através de uma rede de 200 centros médicos credenciados nos países de origem.
O Catar não publica estatísticas sobre mortalidade de trabalhadores migrantes. Dados sobre a tendência estão disponíveis com números de apenas dois países – índia e Nepal – através de estatísticas divulgadas por suas embaixadas no Catar.
Em 2014, 279 trabalhadores vindos da índia perderam suas vidas. Um recorde. Em 2011, foram 239. Em 2012, 237 trabalhadores e em 2013, 241. Em 2015, foram 90 mortes até agora. O número de nepaleses mortos também impressiona: 191 em 2010, 162 nos primeiros meses de 2011, 169 em 2012, de novo 191 em 2013 e um recorde em 2014: 194 mortes. Esses dois países, que supostamente representam cerca de 60% do total da força de trabalho, registram uma média de 400 mortes por ano no total.
Ou seja, a situação é bem mais grave: a estimativa de setembro de 2013 da ITUC de que serão 4000 mortos até o início da Copa de 2022 não inclui as mortes dos 40% de trabalhadores de outros países de origem. Logo, é baseada numa estimativa conservadora.
A DLA Piper apresentou, em abril de 2014, uma taxa anual de mortes para trabalhadores do Bangladesh de cerca de 180 por ano. Esse número se tornou público depois da estimativa de 2013 da ITUC.
As autoridades do Catar inicialmente negaram o número de mortos, mas agora sustentam que poucas mortes ocorreram nos locais das obras e que não possuem relação com a Copa do Mundo.
O relatório cita o sistema “kafala” no Catar que torna os trabalhadores migrantes totalmente dependentes do empregador em todos os aspectos de suas vidas no país – seja no local de trabalho, seja indo ou vindo dos canteiros de obras. A autoridade do empregador sobre o trabalhador é absoluta. Logo, sua responsabilidade também é absoluta.
Há outro dado que lança uma sombra no Catar. Os exames pós-morte não são realizados em trabalhadores migrantes, exceto quando a polícia suspeita de assassinato.
Dependendo da fonte e país de origem, entre 40% e 65% das mortes são descritas como “súbita”, “súbita cardíaca” “natural” ou “causa desconhecida”. Essas mortes costumam ocorrer nos locais de trabalho, à noite. As condições de trabalho são extremas, em turnos de 12 horas ou mais sob temperaturas que chegam a superar os 40 graus, com acesso limitado ou nenhum a água potável. Além disso, os locais de trabalho são apertados, não-higiênicos e pouco ventilados. Essas são as principais causas dessas mortes de homens mais jovens que não haviam apresentado qualquer problema médico evidente antes. As taxas de mortalidade costumam subir nos meses mais quentes.
Há suspeitas de que as mortes são atribuídas a doenças do coração com o objetivo de disfarçar as fatalidades no local de trabalho.
Acidentes de trânsito são frequentemente citados como a segunda maior causa de mortes de trabalhadores migrantes no Catar. O transporte é responsabilidade do empregador, e os trabalhadores raramente têm acesso a outros meios. Alguns são mortos a caminho do trabalho ou voltando dele, outros são mortos como pedestres (o Catar tem um dos recordes mundiais de pior segurança nas estradas), na beira da estrada de trabalhadores, esperando a empresa de transporte, e alguns morrem trabalhando no próprio setor de transporte – tanto como transporte pessoal ou como motoristas de entrega ou de caminhões.
Das mortes de trânsito no Qatar, 27% são de pedestres, sendo que 92% deles são trabalhadores migrantes.
As taxas relativamente altas de suicídio estão ligadas ao desespero dos trabalhadores presos na kafala, trabalhando e vivendo em condições deploráveis, que podem desencadear ou exacerbar doenças mentais, diz o relatório da ITUC.
O Catar alega que a taxa de mortes atribuídas a acidentes que de fato ocorrem nos locais de trabalho é extremamente baixa. Isso contradiz as descobertas de estudos do Centro Médico Hamad, o grande serviço de saúde no Catar, que publicou dados em 2013 indicando uma média anual de 1000 quedas de alturas em locais de construção, um aumento de 40% em relação a 2008 (época em que a taxa de mortes por quedas no Catar já era significativamente mais alta do que a de qualquer outro país rico).
Já em setembro de 2010, até 25% dos trabalhadores migrantes no Catar disseram ter sofrido ferimentos no trabalho.
O país alega o contrário, apesar de não apresentou nenhuma prova. A inevitável “pressa para concluir” a infra-estrutura e instalações a tempo para a Copa deverá aumentar a mortalidade de trabalhadores.
Em 2014, a Organização Mundial do Trabalho fez um apelo para que o Catar implante reformas fundamentais para elevar sua legislação e prática trabalhista a padrões internacionais. Apesar de promessas do país, nenhuma reforma significativa foi feita. Relatórios recentes do Catar alegam que nenhuma morte ocorreu nos estádios que estão sendo construídos para a Copa do Mundo. Mas estradas, ferrovias, hotéis, serviços e outras obras necessárias para que o mundial seja bem sucedido também fazem parte do pacote de infraestrutura.
Toda a economia do Catar está atualmente orientada para a entrega da Copa do Mundo de 2022 como a peça-central de seu programa de desenvolvimento de infraestrutura. O relatório da ITUC diz que o movimento sindical internacional já se ofereceu várias vezes para trabalhar com o Catar visando encontrar soluções positivas, para garantir o respeito aos direitos dos trabalhadores de acordo com os padrões internacionais, inclusive oferecendo conhecimento técnico buscando garantir ambientes de trabalho seguros e saudáveis e firmar acordos na área de habitação e transporte. O governo do Catar até hoje recusou todas as ofertas. Enquanto isso, sob o silêncio da Fifa, milhares de trabalhadores seguem perdendo suas vidas.
Fonte: Revista Proteção