Lições da crise hídrica
Contra a negligência e a incompetência, consciência, participação e criatividade
O polivalente São Pedro, suposto abridor das portas do céu para os humanos que lá pretendem entrar, e tido como o grande gestor das comportas de águas que se derramam sobre a terra, na forma de chuvas – entre outros afazeres menos complexos – já deixou claro que a crise hídrica, em grande parte do Brasil, não é de sua responsabilidade. Tampouco aceitaram ser responsabilizados tanto ‘El Niño’ como ‘La Niña’, fenômenos climáticos originados no Pacífico, cujos desastrosos efeitos vão se alternando, periodicamente, segundo o gênero da criança… Os três reconhecem – ao lado de muitos outros – que a questão é essencialmente humana e muito antiga. A imprevisão, a falta de planejamento, o uso e abuso irresponsável dos recursos da natureza, a incompetência, a inércia, a negligência, a ganância; enfim, uma combinação desastrosa de determinantes explica a atual grave crise hídrica. Do livro “As Lições da Crise Hídrica”, recentemente lançado em Campinas, da autoria do Engo. Agrônomo Nelson Luiz Neves Barbosa, empresto o título desta coluna, e algumas de suas reflexões.
Felizmente, por mais triste que seja a seca, e penosa que seja a sensação de consumir água – quase lodo – de “volumes mortos”, há que se registrar e aprender com as lições dos “volumes vivos” que – graças a Deus – habitam a terra, e que se recusam a parar de verdejar e crescer em suas ideias, e iniciativas, ações, respostas e invenções, comuns às graves crises da humanidade, que a nossa crise hídrica também vem mostrando. E é nesta leitura da ampliação da consciência, da participação e da criatividade das pessoas e da sociedade que eu identifico o fato portador de futuro – escolhido para este mês – lembrando o significado deste conceito, enunciado por Michel Godet, nos seguintes termos: “sinais ínfimos, por sua dimensão presente, existentes no ambiente, mas imensos por suas consequências e potencialidades”.
Na mesma linha, porém de forma mais radical – quase assustadora – situa-se a posição do jornalista e doutor em Ciência Política, Leonardo Sakamoto, quando afirma que vai ser didático ficar sem água. “Eu realmente acredito que a escassez prolongada terá um efeito transformador na forma através da qual percebemos as consequências de nossos atos”. “Acho bom que falte água. Que as torneiras sequem. Que as pessoas parem de lavar seus carros três vezes por semana. Que a mangueira seja aposentada como vassoura. Que os banhos fiquem curtos. Que as empresas deixem de desperdiçar. Que o preço da água suba – porque só se dá valor para coisa cara por aqui. Que se entenda o real valor da água” – prossegue Sakamoto -“a São Paulo que se reerguer dessa catástrofe será mais consciente”.
Sob uma óptica menos radical ou irônica, vejo como possíveis efeitos positivos dessa crise hídrica a mobilização da sociedade, envolvendo distintos estratos sociais, crianças, jovens, adultos, e velhos, discutindo e desenvolvendo iniciativas solidárias, inteligentes e criativas que expressam a ampliação da consciência sobre a importância vital do binômio – água e energia.
Assistimos esperançosos o surgimento, o engajamento e o florescimento da cultura da sustentabilidade ambiental, social e econômica, a partir da associação da questão da água com a questão da energia. A realidade exige além de mudanças de atitude, na esfera individual e coletiva, investimentos tecnológicos ousados, como bem destaca recente número especial da revista Scientific American – Brasil, inteiramente dedicado à questão da crise hídrica no Brasil. Aliás, a coletânea de textos inclui, também, um alentado documento elaborado por uma equipe de 16 cientistas brasileiros de diferentes áreas do conhecimento, especializados em recursos hídricos, reunidos no final de novembro passado, em São Paulo, pela Academia Brasileira de Ciências (ABC) e Academia de Ciências do Estado de São Paulo (Aciesp).
Assim, é nessa correnteza de reflexões e ações a partir da crise hídrica que proponho a reflexão-ação sobre a atual crise no “mundo do trabalho” que ameaça os trabalhadores e as trabalhadoras em nosso país. Entre as ameaças destaco a perda de direitos trabalhistas e previdenciários, conquistados na luta por gerações ao longo de quase cem anos, como as que envolvem a proteção da Saúde e Segurança no Trabalho. Também esta crise deve ser enfrentada pela conscientização, pela mobilização e pela participação, com criatividade e responsabilidade. Não são tarefas para São Pedro, mas para cada um de nós!