“O futuro que queremos é sem amianto”

“O futuro que queremos é sem amianto”

“Cúpula dos Povos, Rio + 20”
Tenda 1: “Espaço Saúde, Meio Ambiente e Sustentabilidade”

“O FUTURO QUE QUEREMOS é SEM AMIANTO”

Rio de Janeiro, 15 de Junho de 2012.

Síntese do Pronunciamento do Prof. René Mendes1

INTRODUçãO

Convidado a participar deste evento, na sessão que trata do tema do Asbesto ou Amianto, aceitei com alegria e com senso de responsabilidade, por entender ser uma oportunidade ímpar de dar mais visibilidade a um tema que, a rigor, já não precisaria estar sendo debatido no Rio de Janeiro, em 2012, posto tratar-se de um tema que tem longa história trágica de mais de 100 anos, mais precisamente, desde 1907…

Este atraso de mais de 100 anos justifica o título desta sessão: “o futuro que queremos é sem amianto”, e eu – neste momento -retificaria: “o presente que merecemos deveria ser sem amianto!” Nós podemos antecipar o futuro!

Creio, assim, que este meu comentário introdutório me conduz, e nos conduz a todos, aos três principais eixos desta “Cúpula dos Povos – Rio + 20”:

a) – “Denunciar as causas estruturais das crises, das falsas soluções e das novas formas de reprodução do capital”;
b) – “Mostrar que as soluções já existem”;
c) – “Estimular organizações e movimentos sociais a articular processos de luta pós-Rio+20”.

A lembrança destes três eixos estruturantes da “Cúpula dos Povos” é oportuna e sempre necessária, e estes três eixos aplicam-se, perfeitamente, à questão do Amianto/Asbesto no mundo e, principalmente, ao caso brasileiro. Usá-los-ei para organizar meu breve depoimento.

CAUSAS ESTRUTURAIS DO PROBLEMA DO AMIANTO

Como médico, pesquisador e professor na área de Saúde, há mais de 40 anos no exercício de minha profissão, estudando o tema do amianto e dos danos à saúde humana dele decorrentes, posso asseverar, desde já, que, à luz dos conhecimentos atuais, os problemas do amianto no mundo e, principalmente no Brasil, não são de ordem técnica ou científica – muito menos problemas de ordem médica – e sim, causados e perpetuados por determinantes políticos e econômicos, que colidem, quase sempre frontalmente, contra os ditames do respeito à Vida e do respeito ao Meio Ambiente.

Questiúnculas técnicas ou científicas – ou melhor, pseudocientíficas – têm servido de pretexto para postergar ad infinitum – se possível fosse – as soluções que já existem, e ainda para tentar enganar e paralisar autoridades do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e do Poder Executivo, em muitos países do mundo, mas com lamentável destaque para o caso brasileiro.

Refiro-me, por exemplo, a argumentos falaciosos sobre uma suposta crisotila, que branca, brasileira e “pura”, seria menos tóxica, menos perigosa e menos carcinogênica do que fibras de outras nacionalidades, de outras cores ou, talvez, “impuras”…

Refiro-me, também, a discussões estéreis sobre a biopersistência da crisotila; ou sobre o número exato de casos de mesotelioma de pleura em nosso país – cem, mil, dez mil? – como se o valor das vidas humanas se contasse pelo número de zeros à direita, ou como se se quisesse fazer “leilão”, de quem dá mais, ou quem dá menos, nas estatísticas de adoecimento, de incapacidade e de morte, desnecessários e totalmente evitáveis, em pleno ano de 2012!

Refiro-me, também, às discussões jurídicas – quando não chicanas – sobre o cumprimento dos preceitos constitucionais estabelecidos no Artigo 196 da Constituição Federal, quanto ao Direito à Saúde, e à obrigação do Estado, de estabelecer “políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos à saúde”. Isto é, se eles seriam responsabilidades da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios! Neste aspecto concordamos com o Ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, quando se pronunciava a respeito de questões de saúde: “é hora de atentar-se para o objetivo maior do próprio Estado, ou seja, proporcionar vida gregária segura e com o mínimode conforto suficiente a atender ao valor maior atinente à preservação da dignidade do homem.”2

Aliás, já passou da hora!

Gostaria de ilustrar a questão das causas estruturais do problema do amianto/asbesto no Brasil – aplicável também, muito provavelmente, a outros países – com a lembrança de que, em nosso país, a Lei Federal 9.055/1995 – e o seu respectivo Decreto Regulamentador no. 2.350/1997 -, que, a despeito de sua flagrante inconstitucionalidade, ainda regem a matéria. Legisladores espertos e inescrupulosos conseguiram a façanha de não apenas proteger e privilegiar a crisotila brasileira, como o privilégio de isentá-la da avaliação de risco à saúde pelas autoridades sanitárias, obrigando que outras fibras alternativas, sempre o façam, e o resultado prático é que a autoridade sanitária brasileira não o faz, nem para a crisotila, nem para as outras fibras. O privilégio, de um lado, e a negligência, de outro, certamente não ocorrem por acaso, e, mais uma vez, não são questões técnicas ou científicas, e sim, questões políticas e econômicas, próprias do modelo hegemônico de desenvolvimento do nosso país. E isto precisa ser dito e denunciado aqui, na “Cúpula dos Povos”, para que nosso povo e os demais povos o saibam!

Amplio estas ideias explicativas da raiz do problema do amianto no Brasil – e provavelmente no mundo – com a lembrança de que, desde 2001, o Conselho Nacional do Meio Ambiente – CONAMA já estabeleceu a Moção no. 30, “que dispõe sobre o banimento progressivo do amianto” no Brasil. E a correta, mas inócua e descumprida Moção do CONAMA, que já tem mais de dez anos de idade, já abordava, de modo apropriado, a visão de “cadeia produtiva” da crisotila, na superação do falacioso argumento do “uso seguro” e do “uso controlado” da dita fibra. O que aconteceu de lá para cá? Nada! Por exemplo, segundo o item 5 da Moção 30 do CONAMA, “a proibição de utilização do uso das fibras de amianto crisotila em artefatos domésticos, comerciais e industriais, como telhas, caixas d´água” deveria entrar em vigor em 31 de dezembro de 2005. E estamos em junho de 2012! E isto precisa ser dito e denunciado aqui, na “Cúpula dos Povos”, para que nosso povo e os demais povos o saibam!

Complemento estas reflexões sobre a prevalência dos determinantes econômicos do problema do amianto no Brasil, ilustrando-as com o que ocorreu no ano 2004. Em 19 de abril, foi criada uma “Comissão Interministerial para Elaboração de uma Política Nacional Relativa ao Amianto/Asbesto”, por meio da Portaria Interministerial no. 8, assinada pela então Ministra-Chefe da Casa Civil da Presidência da República, e pelos ministros de Estado do Trabalho, da Saúde, da Previdência Social, do Meio Ambiente, e do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior.

Sobre sólidos e corretos argumentos de Saúde e de Meio Ambiente3, a Comissão Interministerial teria o prazo e 180 dias para discutir e propor uma “Política Nacional sobre Amianto/Asbesto”.

Contudo, além de ter sido intencionalmente esvaziada e não ter levado a absolutamente nada o trabalho da Comissão – exceto ao consenso de que o amianto é cancerígeno e como tal deveria ser tratado – foi criado, três meses após, outro Grupo de Trabalho, este pelo Ministério das Minas e Energia e pelo Departamento Nacional da Produção Mineral (Portaria Conjunta 197, de 16 de julho de 2004), com o objetivo de “elaborar e encaminhar estudos sobre a situação atual do amianto no Brasil, no que tange à sua ocorrência bem como direitos minerários existentes para sua pesquisa e exploração”. Dito Grupo de Trabalho foi constituído exclusivamente por dirigentes destes dois órgãos, sem a participação das áreas da Saúde, do Trabalho, do Meio Ambiente, da Previdência Social e outras. O GT ainda deveria levar em conta “a importância da produção e transformação do amianto no comércio interno e externo do País…”, segundo a Portaria.

Embora não sejam conhecidos, oficialmente, os resultados dos trabalhos da Comissão Interministerial e do Grupo de Trabalho, foram eles traduzidos, na prática, pelo abandono das questões de Saúde e Meio Ambiente pelo Poder Executivo, e pela sobrevivência tranquila do negócio do amianto no Brasil.

E isto precisa ser dito e denunciado aqui, na “Cúpula dos Povos”, para que nosso povo e os demais povos o saibam!

AS SOLUçõES Já EXISTEM

Esta edição da “Cúpula dos Povos” parte da premissa de que as soluções para os principais problemas que afetam a Saúde e o Meio Ambiente – principalmente acometendo os mais despossuídos e excluídos- já existem, e este é o caso típico do amianto.

Como médico e profissional de Saúde Pública, reitero que este grave problema de Saúde Pública e Saúde Ambiental, que também afeta a saúde dos trabalhadores na cadeia produtiva do amianto crisotila não é exatamente um problema de soluções de saúde, mas de abordagem política e econômica.

As soluções já foram desenvolvidas ao longo de quase 100 anos de conhecimento a respeito dos malefícios causados pelo amianto – inclusive o crisotila – e comprovadamente também confirmado no Brasil, há mais de 50 anos, e ainda hoje, todos os dias. Eu, como médico, tive a oportunidade de acompanhar trabalhadores que, graças à Indústria do Amianto no Brasil, foram transformados em pacientes; e pacientes que foram transformados em ex-trabalhadores, ex-pacientes, agora mortos, de saudosa memória, os quais aqui lembramos, com respeito e emoção!

Soluções existem, sim, e há muito tempo! Mudanças tecnológicas; mudanças de processo; uso de produtos alternativos de comprovada segurança; conversão tecnológica; geração de empregos “seguros e saudáveis” – segundo linguagem da Organização Mundial da Saúde; “empregos decentes” – segundo linguagem da Organização Internacional do Trabalho; “empregos verdes”, “decentes”, “seguros e saudáveis”, como aqui na Conferência certamente muito se falará. é um vexame internacional para o Brasil, ter que explicar a nós, brasileiros, e aos outros, estrangeiros, que aqui ainda prevalece a hegemonia do econômico sobre o social. Tornou-se ridículo frente ao imenso arsenal de possibilidades tecnológicas, ainda tentar defender substâncias cancerígenas, atropelando os princípios da ética, do Desenvolvimento Sustentável, e, sobretudo, descartando de forma acintosa o “Princípio da Precaução”, que deveria nortear as políticas públicas de nosso país!

Há instituições públicas de ensino e pesquisa em nosso país, mantidas pelo orçamento público da União e de Estados, que aindaestão a serviço da defesa da crisotila, e isto precisa ser dito e denunciado aqui, na “Cúpula dos Povos”, para o nosso povo brasileiro e para o mundo!

Há instituições de fomento à pesquisa, mantidas, também, pelo orçamento público, subsidiando a defesa da crisotila, como se ela fosse um insumo benéfico para a saúde dos trabalhadores e para a saúde de nossa população. E isto precisa ser dito e denunciado!

A ARTICULAçãO DA LUTA ANTIAMIANTO

Por último, mas não menos importante, gostaria de chamar a atenção para o terceiro e grande eixo estruturante desta “Cúpula dos Povos”, nesta Conferência “Rio + 20”, isto é, o da articulação da luta, após este evento!

Sei do valor dos movimentos sociais há muito tempo engajados na luta antiamianto, no Brasil e no mundo, e faço, aqui, uma menção especial à luta da ABREA, a quem escolho como representativa deste movimento.

Sei de outros movimentos sociais, no Brasil e no mundo, e conclamo a todos a prosseguirmos a luta. Sem vocês, e sem o controle social pouco ou nada se fará! Esta é a história das conquistas – pequenas e grandes – dos trabalhadores e das trabalhadoras, dos cidadãos e das cidadãs, no mundo inteiro!

Contudo, neste momento, e já encerrando meu breve depoimento, chamo a atenção do Poder Público constituído – Executivo, Legislativo, Judiciário e Ministério Público – para que, de forma responsável e corajosa, se una na construção de uma Política Pública de defesa de Saúde e do Meio Ambiente, rompendo a inércia, as conveniências, os “lobbies” – poderosos e imiscuídos em toda parte – para ajudar a tirar o Brasil do atraso.

Reitero: estamos aqui para antecipar o futuro, isto é, trazer ao presente – aqui e agora – a construção do futuro que queremos, sem amianto!

Conclamo, especialmente, as autoridades sanitárias e o Sistema único de Saúde – SUS – brasileiro, a se posicionar com mais visibilidade e assertividade, em defesa da saúde, nas perspectivas da Saúde Coletiva, da Saúde Ambiental e da Saúde do Trabalhador, agindo como dele se espera, como promotor e alavancador de políticas de promoção e proteção da saúde, mas também muito competente na atenção integral à saúde, de modo atornar menos penosa a trajetória das vítimas do amianto crisotila no Brasil. Do mesmo modo, também, a melhorar a vigilância da saúde, em todos os níveis; de conhecermos melhor a gravidade do problema, na perspectiva clínica e epidemiológica, e não ficarmos reféns dos “leilões” de números de vítimas do amianto. Estas vulnerabilidades apenas ajudam os que se favorecem da nossa fragilidade, pois para eles, “quanto pior, melhor”!

Outros atores sociais são extremamente necessários, mas reitero e aqui finalizo, lembrando que a erradicação das doenças causadas pelo amianto crisotila, no Brasil e no mundo, requer políticas públicas de Governo – e não apenas de Saúde, de Previdência Social, de Trabalho, de Meio Ambiente, ainda que necessárias e imprescindíveis.

E é por isto que estamos aqui, nesta “Cúpula dos Povos”, enquanto uma expressão autêntica do mundo real, de seus problemas, mas também de suas inimagináveis potencialidades!

Muito obrigado!

Notas:

1Médico especialista em Saúde Pública. Mestre, Doutor, Livre-Docente em Saúde Pública pela USP. Professor Titular do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG (aposentado). 2 Decisão do STF, em agravo regimental no Agravo de Instrumento no. 238.328-0/RS. 3 Corretamente, o preâmbulo da Portaria aborda a questão do “ciclo de vida” da fibra, nos seguintes termos: “Considerando o grande número de indivíduos potencialmente expostos à substância no longo ciclo de vida das fibras, inclusive fora dos locais de trabalho, dada sua ampla presença em numerosos produtos”.

Por |2012-06-19T12:07:00-03:0019 de junho de 2012|Notícias|