A promoção da inclusão social em saúde do trabalhador

A promoção da inclusão social em saúde do trabalhador

Na tarde da terça-feira 6 de outubro, a um dia do encerramento do IX Fórum Presença Anamt e do IX Congresso Ibero-Americano de Medicina do Trabalho, os doutores René Mendes, Elizabeth Dias e Marco Antônio Rêgo se reuniram na cafeteria do Bahia Othon para falar ao Jornal da Anamt sobre o envolvimento da Medicina do Trabalho com as questões sociais — tópico que será tema central do 14º Congresso Anamt em maio de 2010. Convidados para o congresso de Salvador para tratar de assuntos como a SST e a exclusão social, a gestão sustentável da saúde do trabalhador em um mundo globalizado e as incertezas frente às descobertas em relação ao câncer ocupacional, os especialistas debateram como o médico do trabalho pode fazer a diferença em um mundo em que a desigualdade social e a disparidade socioeconômica não apontam para a perspectiva de deixar de ser regra.

Os tópicos que vocês abordaram no IX Fórum Presença Anamt a todo momento se cruzaram. Como muitas mesas mencionaram, não se deve descontextualizar a realidade do trabalhador e sua saúde quando o objetivo é garantir a todos seus direitos mais básicos, seja na área ocupacional ou não. De que forma devemos fazer essa leitura mais ampla da realidade?

Dr. René Mendes — Acho que o eixo central desta conversa deve ser a questão da inclusão, mesmo que a globalização seja claramente o problema — quero dizer, seu lado perverso, que impacta a vida das organizações, comunidades e trabalhadores, e não seu lado positivo mais óbvio. Em geral, esse lado negativo é lido simplesmente como o “preço da globalização”: uma grande parcela da população sofre enormemente com seus custos. Portanto, nossa visão sobre a saúde dos trabalhadores — que hoje estamos terceirizados, quarteirizados, trabalhando demais — não resultará em boa Medicina do Trabalho se não levarmos em consideração este referencial macro: os mercados globalizados têm tornado o trabalho precário, desprestigiado e, mesmo que eventualmente, marginal ao processo.

Na prática, entretanto, como pode o médico do trabalho levar a seu cotidiano essa percepção mais ampla da realidade?

Dra. Elizabeth Dias — Acredito que é importante para o profissional fazer certas escolhas e se posicionar. E complementando um pouco o que o Dr. René disse, sobre a necessidade de se entender o todo, diria que nós devemos trabalhar também para perder uma certa ingenuidade. O que seria isso? Na minha opinião, trata-se de uma certa naturalização dos conflitos. A exclusão é socialmente construída. As gerações mais novas, talvez influenciadas pela visão desenvolvimentista pós-Segunda Guerra Mundial, ainda depositam muita esperança no crescimento econômico: como se, por si só, ele seja capaz de libertar da escassez, da pobreza, da opressão. E, hoje, já vivemos uma outra etapa da exclusão, em que a produção em massa foi substituída por uma proposta de consumo customizado, mais fragmentado, setorizado, sofisticado… Isso refletiu nos empregos, e hoje temos uma realidade em que não há trabalho para todo mundo e o trabalho disponível é cada vez mais precário e volátil.

Os médicos do trabalho estão no meio desse conflito. Costumo dizer que nossa caneta é poderosa, porque ela pode, por exemplo, excluir um indivíduo em um exame admissional. Isso é algo que acontece ali, no consultório, e é exatamente nesse momento de relação íntima entre médico e trabalhador que se constrói a exclusão. é desconfortável saber que minha postura é responsável pelo que acontece com o outro, mas ela acontece, esteja eu consciente dela ou não. Por outro lado, não é correto colocar tanto poder e responsabilidade sobre o médico apenas, se a questão tem determinantes potentes na macroeconomia. é uma realidade complexa que precisamos conhecer para nos posicionarmos diante dela.

A inclusão ou exclusão em exames, todavia, não é também uma questão de norma?

Dra. René Mendes — Essa é uma questão-chave, porque temos visto exatamente esse excesso de apego à norma, à burocracia, sua utilização como uma espécie de escudo que leva à naturalização — como bem colocou a Dra. Elizabeth. Ao mesmo tempo, no entanto, percebe-se que existe uma distância entre os critérios que o médico usa na admissão e na demissão, o que é muito perverso. Acredito que, quanto pior é o médico, mais insensível e menos comprometido ele é com a saúde do trabalhador; mais ele aplica um rigor descabido, até do ponto de vista técnico, com o intuito de impedir admissões — rigor esse que é diferente nos processos demissionais, já que a frouxidão ou seu desinteresse em detectar alguma patologia são diametralmente opostas a sua prática na admissão. Isto é uma caricatura cruel de realidades que todos nós vivemos, tanto no exercício da Medicina do Trabalho quanto da Perícia Previdenciária. Como foi dito antes: o médico do trabalho tem nesse momento um poder enorme, de que ele costuma gostar. Mas seu papel não deve ser o de admitir ou demitir: cabe a ele opinar tecnicamente sobre a aptidão ou a inaptidão, considerando que o foco correto da Medicina do Trabalho é o de buscar ao máximo a adaptação do trabalho aos trabalhadores e o aproveitamento das capacidades e habilidades das pessoas candidatas a emprego. Esta é uma das oportunidades mais importantes que a Medicina do Trabalho tem no exercício de seu papel de promotora da inclusão social.

Qual é o papel da academia no aumento dessa conscientização entre os profissionais da saúde?

Dr. Marco Antônio Rêgo — Na difícil relação entre capital e trabalho em que o médico do trabalho se encontra, acho que a construção da consciência é também um problema de formação. Sou professor, e tento passar aos alunos da graduação a importância de se estudar a história da vida de seus pacientes: procure escutar as pessoas, ouvir o que elas têm para falar. Na atividade profissional, contudo, raramente vemos isso acontecer. Em geral, o indivíduo da área administrativa de certa clínica ou hospital até precisa saber qual é a profissão do paciente, mas o médico pouco se detém sobre isso. A pessoa atendida diz no máximo que é da área administrativa, funcionário público, industriário. Pergunto: esse tipo de descrição demarca qual é a história dessa pessoa, qual é seu trabalho? De forma alguma… Então ainda acho válido esse esforço de levar aos candidatos a médicos essa visão diferenciada. Pessoalmente, acho que é uma tarefa de muita responsabilidade que o professor tem. Estamos na vigência de mudanças de currículos, já trabalhando um eixo ético e humanista que permeia os seis anos de formação. Alguns acham desnecessário, mas outros, felizmente, estão valorizando isso. Mudar essa forma de pensar é importante, para construirmos uma Medicina mais humana.

Tanto no que entendemos como mundo globalizado quanto na proteção social de que os cidadãos precisam, os Estados nacionais são protagonistas, seja na construção ou desconstrução desses conceitos. Nessa questão, que papel tem exercido o Estado brasileiro?

Dra. Elizabeth Dias — Nesse processo de reestruturação produtiva, que se dá em escala global, é interessante observar a alternância de poder que vem acontecendo não apenas na América Latina, mas em países como os Estados Unidos, muito como uma resposta a esse cenário que se impõe. é claro que esses novos governos têm ainda muito por fazer, até porque estão todos submetidos às regras internacionais que levam a muitos conflitos e, com certeza, grandes frustrações. Na esfera do trabalho, tivemos alguns ganhos, mas também algumas perdas dos direitos dos trabalhadores… Mas, em uma perspectiva histórica, não podemos deixar de valorizar as pequenas coisas que têm acontecido no Brasil, como por exemplo os programas de renda mínima, de acesso à escola, de geração de trabalho e renda, ainda que as questões de saúde dos trabalhadores não estejam sendo consideradas como deveriam. Algumas mudanças que, acredito, podem gerar uma sociedade um pouco mais justa e digna para as pessoas.

Por |2009-11-22T18:49:37-02:0022 de novembro de 2009|Notícias|